Extraído do livro História Eclesiástica - Eusébio de Cesaréia. Livro III, XXIII, 1-19
1. Por este tempo vivia
ainda na Ásia o mesmo a quem Jesus amou, o apóstolo e evangelista João, e ali
continuava regendo as igrejas depois de regressar do desterro na ilha, depois
da morte de Domiciano.
2. Que João permanecia em
vida por este tempo é suficientemente confirmado por duas testemunhas.
Estas, representantes da
ortodoxia da Igreja, são bem dignas de fé, tratando-se de homens como Irineu e
Clemente de Alexandria.
3. O primeiro deles, Irineu,
escreve textualmente em alguma parte do livro II de sua obra Contra as heresias
como segue:
"E todos os presbíteros
que na Ásia estão relacionados com João, o discípulo do Senhor, dão testemunho
de que João o transmitiu, porque ainda viveu com eles até os tempos de
Trajano."
4. E no livro III da mesma
obra manifesta o mesmo com estas palavras: "Mas também a igreja de Éfeso,
por ter sido fundada por Paulo e porque nela viveu João até os tempos de
Trajano, é um testemunho veraz da tradição dos apóstolos."
5. Por sua parte, Clemente
assinala o mesmo tempo, e em sua obra que intitulou Quem é o rico que se salva acrescenta uma narrativa valiosíssima
para os que gostam de escutar coisas belas e proveitosas. Toma, pois, e lê o
que ali escreveu:
6. "Escuta uma historieta,
que não é uma historieta, mas uma tradição existente sobre o apóstolo João,
transmitida e guardada na memória. Efetivamente, depois que morreu o tirano,
João mudou-se da ilha de Patmos a Éfeso. Daqui costumava partir, quando o
chamavam, até as regiões pagãs vizinhas, com o fim de, em alguns lugares,
estabelecer bispos; em outros, erguer igrejas inteiras, e em outros ainda,
ordenar a algum dos que haviam sido designados pelo Espírito.
7. Veio, pois a uma cidade
não muito distante e cujo nome alguns inclusive mencionam. Depois de consolar
os irmãos em tudo o mais, tendo visto um jovem de grande estatura, de aspecto
elegante e de alma vivaz, fixou seu olhar no rosto do bispo instituído sobre a
comunidade e disse: “Eu te confio este com toda a atenção, na presença da igreja
e com Cristo como testemunha.” O bispo aceitou o jovem, prometendo-lhe tudo,
mas João insistia no mesmo e apelando para as mesmas testemunhas.
8. Logo regressou a Éfeso, e
o presbítero levou para casa o jovem que lhe havia sido confiado e ali o
manteve, rodeou-o de afeto e por fim batizou-o. Depois disto afrouxou um pouco
sua grande solicitude e vigilância, pensando que havia imposto a salvaguarda
perfeita: o selo do Senhor.
9. Mas certos rapazes de sua
idade, malandros, dissolutos e tendentes ao mal, perverteram-no. Sua liberdade
era prematura. Primeiramente atraíram-no por meio de suntuosos banquetes;
depois levaram-no consigo, inclusive de noite, quando saíam para o roubo, e por
fim exigiram-lhe participar com eles de maldades maiores.
10. O jovem foi se
acostumando a isto sem perceber, e desviando-se do caminho reto, como cavalo de
boca dura, brioso e que rejeita o freio, por seu vigor natural foi-se
precipitando com mais força ao abismo.
11. Acabou perdendo a
esperança na salvação divina. Desde então não planejava coisas pequenas, mas,
tendo já cometido grandes crimes, já que estava perdido de uma vez por todas,
considerava justo correr o mesmo risco dos demais. Assim foi que, juntando-se
aos mesmos e formando um bando de salteadores, era ele seu líder resoluto, o
mais violento, o mais homicida, o mais temível de todos.
12. Depois de algum tempo
surgiu certa necessidade e voltaram a chamar João. Este, depois de ter resolvido
os assuntos pelos quais tinha vindo, disse: “Bem, bispo, devolve-me o depósito
que eu e Cristo te confiamos na presença da igreja que presides e que é
testemunha.”
13. O bispo a princípio
ficou estupefato, acreditando ser vítima de calúnia sobre algum dinheiro que
ele não havia recebido: não podia crer no que não tinha nem podia deixar de
crer em João. Quando este lhe disse: “O jovem é o que te peço, e a alma do
irmão”, o ancião prorrompeu em profundos soluços e, marejado de lágrimas,
disse: “este está morto”. Como? Morto de quê? “Está morto para Deus - disse -,
pois afastou-se transformado num perverso, um perdido, e para o cúmulo, um salteador,
e agora ocupa o monte que está frente à igreja, com uma quadrilha de sua mesma
índole.”
14. Rasgou o apóstolo sua
roupa e, golpeando a cabeça, com grande lamento exclamou: “Bom guardião deixei
para a alma do irmão! Mas tragam já um cavalo e alguém que me guie no caminho.”
E dali, tal como estava, saiu da igreja e foi-se.
15. Chegou ao lugar. Os
sentinelas dos bandidos deitaram-lhe as mãos, mas ele não fugia nem suplicava,
mas aos gritos dizia: “Para isso vim, levem-me ao vosso chefe.”
16. Este, entretanto,
aguardava armado como estava, mas ao reconhecer João naquele que se aproximava,
fugiu cheio de vergonha. João o perseguia com todas suas forças, esquecido de
sua idade e gritando:
17. “Por que foges de mim,
filho, de mim, teu pai, desarmado e velho? Tem piedade de mim, filho, não tema.
Ainda tens esperança de vida. Darei conta por ti a Cristo, e se for necessário,
com gosto sofrerei por ti a morte, como o Senhor a sofreu por nós. Por tua vida
eu darei em troca a minha própria. Pára! Tenha fé! Foi Cristo que me enviou!”
18. O jovem, ao ouvi-lo,
primeiramente deteve-se, com os olhos baixos; em seguida largou as armas, e
tremendo, abraçou-se a ele. Seus lamentos eram já um discurso de defesa, e suas
lágrimas serviam-lhe de segundo batismo. Apenas ocultava a mão direita.
19. Mas João foi-lhe fiador,
jurando que havia alcançado o perdão para ele por parte do Salvador, caiu de
joelhos, suplicante, e beijou a mesma mão direita considerando-a já purificada
pelo arrependimento. Reconduziu-o à igreja, orou com súplicas abundantes,
acompanhou-o em sua luta com jejuns prolongados e foi cativando seu espírito
com os variados atrativos de sua palavra, e segundo dizem, não saiu dali até
tê-lo consolidado na igreja, depois de ter dado grande exemplo de verdadeiro
arrependimento e grandes sinais de regeneração, como troféu de uma ressurreição
visível.
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