segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Permanência e morte de São Pedro em Roma

Algumas vezes os protestantes, por não conseguirem desmentir o Primado de Pedro, dizem que Pedro nunca esteve em Roma e, por conseguinte, a Igreja de Roma não poderia ser a verdadeira Igreja de Cristo.

Porém, não é o que dizem os primitivos cristãos...

  • "Lancemos os olhos sobre os excelentes apóstolos: Pedro foi para a glória que lhe era devida; e foi em razão da inveja e da discórdia que Paulo mostrou o preço da paciência: depois de ter ensinado a justiça ao mundo inteiro e ter atingido os confins do Ocidente, deu testemunho perante aqueles que governavam e, desta forma, deixou o mundo e foi para o lugar santo. A esses homens [...] juntou-se grande multidão de eleitos que, em consequência da inveja, padeceram muitos ultrajes e torturas, deixando entre nós magnífico exemplo."(Clemente de Roma, ano 96, Carta aos Coríntios, 5,3-7; 6,1).
  • "Não é como Pedro e Paulo que eu vos dou ordens1; eles foram apóstolos, eu não sou senão um condenado" (Inácio de Antioquia, ano 107, Carta aos Romanos 4,3).
  • "Tendo vindo ambos a Corinto, os dois apóstolos Pedro e Paulo nos formaram na doutrina evangélica. A seguir, indo para a Itália, eles vos transmitiram os mesmos ensinamentos e, por fim, sofreram o martírio simultaneamente" (Dionísio de Corinto, ano 170, extrato de uma de suas cartas aos Romanos conforme fragmento conservado na "História Eclesiástica" de Eusébio, II,25,8).
  • "Nós aqui em Roma temos algo melhor do que o túmulo de São Filipe. Possuímos os troféus dos apóstolos fundadores desta Igreja local. Vai à via Óstia e lá encontrareis o troféu de Paulo; vai ao Vaticano e lá vereis o troféu de Pedro" (Gaio, ano 199)
  • "Pedro, finalmente tendo ido para Roma, lá foi crucificado de cabeça para baixo" (Orígenes, +253, conforme fragmento conservado na "História Eclesiástica" de Eusébio, III,1).


    Grafitos anônimos dos séculos II e III escritos sobre o túmulo de São Pedro localizado durante as escavações arqueológicas promovidas sob a Basílica do Vaticano nas décadas de 50 e 60 (do séc. XX):

  • "Pedro está aqui." (=Petros Eni)
  • "Pedro, pede a Cristo Jesus pelas almas dos santos cristãos sepultados junto do teu corpo."
  • "Salve, Apóstolo!"
  • "Cristo e Pedro"
  • "Viva em Cristo e em Pedro"
  • "Vitória a Cristo, a Maria e a Pedro"


Vídeo do Pastor Anderson Borges da Assembléia de Deus afirmando que Pedro esteve em Roma pastoreando uma Igreja.


sábado, 25 de dezembro de 2010

SOLENIDADE DO NATAL DO SENHOR. HOMILIA DO SANTO PADRE BENTO XVI.


Basílica Vaticana
24 de Dezembro de 2010

Amados irmãos e irmãs!

«Tu és meu filho, Eu hoje te gerei» – com estas palavras do Salmo segundo, a Igreja dá início à liturgia da Noite Santa. Ela sabe que esta frase pertencia, ori
ginariamente, ao rito da coroação do rei de Israel. O rei, que por si só é um ser humano como os outros homens, torna-se «filho de Deus» por meio do chamamento e entronização na sua função: trata-se de uma espécie de adopção por parte de Deus, uma acta da decisão, pela qual Ele concede a este homem uma nova existência, atraindo-o para o seu próprio ser. De modo ainda mais claro, a leitura tirada do profeta Isaías, que acabámos de ouvir, apresenta o mesmo processo numa situação de tribulação e ameaça para
Israel: «Um menino nasceu para nós, um filho nos foi concedido. Tem o poder sobre os ombros» (9, 5). A entronização na função régia é como um novo nascimento. E, precisamente como recém-nascido por decisão pessoal de Deus, como menino proveniente de Deus, o rei constitui uma esperança. O futuro assenta sobre os seus ombros. É o detentor da promessa de paz. Na noite de Belém, esta palavra profética realizou-se de um modo que, no tempo de Isaías, teria ainda sido inimaginável. Sim, agora Aquele sobre cujos ombros está o poder é verdadeiramente um menino. N’Ele aparece a nova
realeza que Deus institui no mundo. Este menino nasceu verdadeiramente de Deus. É a Palavra eterna de Deus, que une mutuamente humanidade e divindade. Para este menino, são válidos os títulos de dignidade que lhe atribui o cântico de coroação de Isaías: Conselheiro admirável, Deus forte, Pai para sempre, Príncipe da paz (9, 5). Sim, este rei não precisa de conselheiros pertencentes aos sábios do mundo. Em Si mesmo traz a sapiência e o conselho de Deus. Precisamente na fragilidade de menino que é, Ele é o Deus forte e assim nos mostra, face aos pretensiosos poderes do mundo, a fortaleza própria de Deus.

Na verdade, as palavras do rito da coroação em Israel n
ão passavam de palavras rituais de esperança, que de longe previam um futuro que haveria de ser dado por Deus. Nenhum dos reis, assim homenageados, correspondia à sublimidade de tais palavras. Neles, todas as expressões sobre a filiação de Deus, sobre a entronização na herança dos povos, sobre o domínio das terras distantes (Sal 2, 8) permaneciam apenas presságio de um futuro – como se fossem painéis sinalizadores da esperança, indicações apontando para um futuro que então era ainda inconcebível. Assim o cumprimento da palavra, que tem início na noite de Belém, é ao mesmo tempo imensamente maior e – do ponto de vista do mundo – mais humilde do que a palavra profética deixava intuir. É maior, porque este menino é verdadeiramente Filho de Deus, é verdadeiramente
«Deus de Deus, Luz da Luz, gerado, não criado, consubstancial ao Pai». Fica superada a distância infinita entre Deus e o homem. Deus não Se limitou a inclinar o olhar para baixo, como dizem os Salmos; Ele «desceu» verdadeiramente, entrou no mundo, tornou-Se um de nós para nos atrair a todos para Si. Este menino é verdadeiramente o Emanuel, o Deus-connosco. O seu reino estende-se verdadeiramente até aos confins da terra. Na imensidão universal da Sagrada Eucaristia, Ele verdadeiramente instituiu ilhas de paz. Em todo o lado onde ela é celebrada, temos uma ilha de paz, daquela paz que é própria de Deus. Este menino acendeu, nos homens, a luz da bondade e deu-lhes a força para resistir à tirania do
poder. Em cada geração, Ele constrói o seu reino a partir de dentro, a partir do coração. Mas é verdade também que «o bastão do opressor» não foi quebrado. Também hoje marcha o calçado ruidoso dos soldados e temos ainda incessantemente a «veste manchada de sangue» (Is 9, 3-4). Assim faz parte desta noite o júbilo pela proximidade de Deus. Damos graças porque Deus, como menino, Se confia às nossas mãos, por assim dizer mendiga o nosso amor, infunde a sua paz no nosso coração. Mas este júbilo é também uma prece: Senhor, realizai totalmente a vossa promessa. Quebrai o bastão dos opressores. Queimai o calçado ruidoso. Fazei com que o tempo das vestes manchadas de sangue acabe. Realizai a promessa de «uma paz sem fim» (Is 9, 6). Nós Vos agradecemos pela vossa bondade, mas pedimos-Vos também: mostrai a vossa força. Instituí no mundo o domínio da vossa verdade, do vosso amor – o «reino da justiça, do amor e da paz».

«Maria deu à luz o seu filho primogénito» (Lc 2, 7). Com esta frase, São Lucas narra, de modo absolutamente sóbrio, o grande acontecimento que
as palavras proféticas, na história de Israel, tinham com antecedência vislumbrado. Lucas designa o menino como «primogénito». Na linguagem que se foi formando na Sagrada Escritura da Antiga Aliança, «primogénito» não significa o primeiro de uma série de outros filhos. A palavra «primogénito» é um título de honra, independentemente do facto se depois se seguem outros irmãs e irmãs ou não. Assim, no Livro do Êxodo, Israel é chamado por Deus «o meu filho primogénito» (Ex 4, 22), exprimindo-se deste modo a sua eleição, a sua dignidade única, o particular amor de Deus Pai. A Igreja nascente sabia que esta palavra ganhara uma nova profundidade em Jesus; que n’Ele estão compendiadas as promessas feitas a Israel. Assim a Carta aos Hebreus chama Jesus «o primogénito» simplesmente para O qualificar, depois das preparações no Antigo Testamento, como o Filho que Deu
s manda ao mundo (cf. Heb 1, 5-7). O primogénito pertence de maneira especial a Deus, e por isso – como sucede em muitas religiões – devia ser entregue de modo particular a Deus e resgatado com um sacrifício de substituição, como São Lucas narra no episódio da apresentação de Jesus no templo. O primogénito pertence a Deus de modo particular, é por assim dizer destinado ao sacrifício. No sacrifício de Jesus na cruz, realiza-se de uma forma única o destino do primogénito. Em Si mesmo, Jesus oferece a humanidade a Deus, unindo o homem e Deus de uma maneira tal que Deus seja tudo em todos. Paulo, nas Cartas aos Colossenses e aos Efésios, ampliou e aprofundou a ideia de Jesus como primogénito: Jesus – dizem-nos as referidas Cartas – é o primogénito da criação, o verdadeiro arquétipo segundo o qual Deus formou a criatura-homem. O homem pode ser imagem de Deus, porque Jesus é Deus e Homem, a verdadeira imagem de Deus e do homem. Ele é o primogénito dos mo
rtos: dizem-nos ainda aquelas Cartas. Na Ressurreição, atravessou o muro da morte por todos nós. Abriu ao homem a dimensão da vida eterna na comunhão com Deus. Por fim, é-nos dito: Ele é o primogénito de muitos irmãos. Sim, agora Ele também é o primeiro duma série de irmãos, isto é, o primeiro que inaugura para nós a vida em comunhão com Deus. Cria a verdadeira fraternidade: não a fraternidade, deturpada pelo pecado, de Caim e Abel, de Rómulo e Remo, mas a fraternidade nova na qual somos a própria família de Deus. Esta nova família de Deus começa no momento em que Maria envolve o «primogénito» em faixas e O reclina na manjedoura. Supliquemos-Lhe: Senhor Jesus, Vós que quisestes nascer como o primeiro de muitos irmãos, dai-nos a verdadeira fraternidade. Ajudai-nos a tornarmo-nos semelhantes a Vós. Ajudai-nos a reconhecer no outro que tem necessidade de mim, naqueles que sofrem ou estão abandonados, em todos os homens, o vosso rosto, e a viver, juntamente convosco, como irmãos e irmãs para nos tornarmos uma família, a vossa família.

No fim, o Evangelho de Natal narra-nos que uma multidão de anjos do exército celeste louvava a Deus e dizia: «Glória a Deus nas alturas, e paz na terra aos homens que Ele ama» (Lc 2, 14). A Igreja ampliou este louvor que os anjos entoaram à vista do acontecimento da Noite Santa, fazendo dele um hino de júbilo sobre a glória de Deus. «Nós Vos damos graças por vossa imensa glória». Nós Vos damos graças pela beleza, pela grandeza, pela bondade de Deus, que, nesta noite, se tornam visíveis para nós. A manifestação da beleza, do belo, torna-nos felizes sem que devamos interrogar-nos sobre a sua utilidade. A glória de Deus, da qual provém toda a beleza, faz explodir em nós o deslumbramento e a alegria. Quem vislumbra Deus, sente alegria; e, nesta noite, vemos algo da sua luz. Mas a mensagem dos anjos na Noite Santa também fala dos homens: «Paz aos homens que Ele ama». A tradução latina desta frase, que usamos na Liturgia e remonta a São Jerónimo, interpreta diversamente: «Paz aos homens de boa vontade». Precisamente nos últimos decénios, esta expressão «o
s homens de boa vontade» entrou de modo particular no vocabulário da Igreja. Mas qual é a tradução justa? Devemos ler, juntas, as duas versões; só assim compreendemos rectamente a frase dos anjos. Seria errada uma interpretação que reconhecesse apenas o agir exclusivo de Deus, como se Ele não tivesse chamado o homem a uma resposta livre e amorosa. Mas seria errada também uma resposta moralizante, segundo a qual o homem com a sua boa vontade poder-se-ia, por assim dizer, redimir a si próprio. As duas coisas andam juntas: graça e liberdade; o amor de Deus, que nos precede e sem o qual não O poderemos amar, e a nossa resposta, que Ele espera e até no-la suplica no nascimento do seu Filho. O entrelaçamento de graça e liberdade, o entrelaçamento de apelo e resposta não podemos dividi-lo em partes separadas uma da outra. Ambas estão indivisivelm
ente entrançadas entre si. Assim esta frase é simultaneamente promessa e apelo. Deus precedeu-nos com o dom do seu Filho. E, sempre de novo e de forma inesperada, Deus nos precede. Não cessa de nos procurar, de nos levantar todas as vezes que o necessitamos. Não abandona a ovelha extraviada no deserto, onde se perdeu. Deus não se deixa confundir pelo nosso pecado. Sempre de novo recomeça connosco. Todavia espera que amemos juntamente com Ele. Ama-nos para que nos seja possível tornarmo-nos pe
ssoas que amam juntamente com Ele e, assim, possa haver paz na terra.

Lucas não disse que os anjos cantaram. Muito sobriamente, escreve que o exército celeste louvava a Deus e dizia: «Glória a Deus nas alturas…» (Lc 2, 13-14). Mas desde sempre os homens souberam que o falar dos anjos é diverso do dos homens; e que, precisamente nesta noite da jubilosa mensagem, tal falar foi um canto no qual brilhou a glória sublime de Deus. Assim, desde o início, este canto dos anjos foi entendido como música vinda de Deus, mais ainda, como convite a unirmo-nos ao canto com o coração em júbilo pelo facto de sermos amados por Deus. Diz Santo Agostinho: Cantare amantis est – cantar é próprio de quem ama. Assim ao longo dos séculos, o canto dos anjos tornou-se sempre de nov
o um canto de amor e de júbilo, um canto daqueles que amam. Nesta hora, associemo-nos, cheios de gratidão, a este cantar de todos os séculos, que une céu e terra, anjos e homens. Sim, Senhor, nós Vos damos graças por vossa imensa glória. Nós Vos damos graças pelo vosso amor. Fazei que nos tornemos cada vez mais pessoas que amam juntamente convosco e, consequentemente, pessoas de paz. Amen.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Feliz Natal

A Virgem esta para dar a Luz. Literalmente Maria esta grávida da Luz do Mundo que é Jesus!
Que o menino Jesus possa nascer em sua vida. E junto com este nascimento do menino Deus possa nascer sonhos e projetos que o leve a experimentar todo dia a graça de Deus.
Desejo a todos que acompanham este humilde apostolado um Feliz Natal. Que Jesus e a Virgem Maria lhe traga muitas bençãos e alegrias.

Pois é. Jesus é o aniversariante e quem ganha o presente somos nós!

VAMOS COMEMORAR, POIS O ANIVERSARIANTE É O NOSSO SALVADOR!

Parabéns Jesus! Obrigado Virgem Maria!

Pax et Ignis

A resposta cristã ao racionalismo - Pe. Raniero Cantalamessa OFM cap


Terceira Pregação do Advento

"ESTAI SEMPRE PRONTOS A DAR A RAZÃO DA VOSSA ESPERANÇA."
(1 Pe 3,15)

A resposta cristã ao racionalismo

1. A razão usurpadora

O terceiro obstáculo que faz parte da cultura moderna, "refratária" ao Evangelho, é o racionalismo. Sobre isso falaremos nesta última meditação do Advento.

O cardeal e, agora, Beato John Henry Newman, deixou-nos um discurso memorável, proferido em 11 de dezembro de 1831, na Universidade de Oxford, intitulado The Usurpation of Raison, a usurpação ou a prevaricação da razão. Neste título já está a definição do que entendemos como racionalismo1. Numa nota explicativa a este discurso, escrita no prefácio à sua terceira edição, de 1871, o autor explica o que quer dizer com esse termo. Por usurpação da razão - diz - se entende "certo abuso generalizado dessa faculdade quando se fala de religião sem um conhecimento íntimo ou sem o respeito devido aos princípios fundamentais desta. Essa ‘razão' é chamada ‘sabedoria do mundo' nas Escrituras é a compreensão de religião dos que têm a mentalidade secularista e se baseiam em máximas do mundo, que lhes são intrinsecamente alheias" 2.

Em outro de seus sermões na universidade, intitulado "Fé e Razão comparadas", Newman ilustra por que a razão não pode ser o juiz supremo em matéria de religião e de fé, com a analogia da consciência:

"Ninguém - escreve - dirá que a consciência se opõe à razão, ou que seus preceitos não podem ser apresentados em forma de argumento; no entanto, quem, a partir disso, argumentará que a consciência não é um princípio original, mas que, para atuar, precisa atender o resultado de um processo lógico-racional? A razão analisa os fundamentos e os motivos da ação, sem ser ela mesma um destes motivos. Portanto, a consciência é um elemento simples da nossa natureza e, no entanto, suas operações admitem ser justificadas pela razão, sem com isso depender realmente dela [...]. Quando se diz que o Evangelho exige uma fé racional, pretende-se dizer somente que a fé concorda com a reta razão em abstrato, mas não que seja realmente seu resultado"3.

Uma segunda analogia é a da arte. "O crítico de arte - escreve - avalia o que ele mesmo não sabe criar, assim também a razão pode dar sua aprovação ao ato da fé, sem por isso ser a fonte da qual a fé emana"4.

A análise de Newman possui recursos novos e originais; destaca a tendência, imperialista, por assim dizer, da razão a submeter todo aspecto da realidade aos próprios princípios. É possível, entretanto, considerar o racionalismo ainda de um outro ponto de vista, intimamente ligado ao anterior. Para ficar na metáfora política empregada por Newman, podemos definir como atitude de isolamento, de fechar-se a essa mesma razão. Isso não consiste tanto em invadir o campo de outros, mas em não reconhecer a existência de outro campo fora do seu próprio. Em outras palavras, na negação de que possa haver verdade fora da que passa através da razão humana.

Desse modo,o racionalismo não nasceu com o iluminismo. É uma tendência contra a qual a fé sempre teve de lidar. Não só a fé cristã, mas também a hebraica e a islâmica, pelo menos na IdadeMédia, conheceram esse desafio.

Contra essa afirmação de absolutismo da razão, levantose em cada época a voz não só de homens de fé, mas também de militantes no campo da razão, filosofia e ciência. "O ato supremo da razão, escreveu Pascal, está em reconhecer que existe uma infinidade de coisas que a sobrepassam."5 No mesmo instante em que a razão reconhece seu limite, ela o rompe e o supera. É por obra da razão que se produz este reconhecimento que é, por isso, um ato puramente racional. Essa é, literalmente, uma "douta ignorância"6. Um ignorar "com conhecimento de causa", sabendo que se está ignorando.

Devemos, portanto, dizer que estabelece um limite para a razão e a humilha aquele que não reconhece nela esta capacidade de transcender-se. "Até agora, escreveu Kierkegaard, sempre se falou assim: ‘Dizer que não se pode entender esta coisa ou aquela não satisfaz a ciência que deseja conhecer'. Esse é o erro. É preciso dizer exatamente o oposto: onde a ciência humana não quer reconhecer que há algo que ela não pode compreender ou - ainda mais preciso - qualquer coisa que da qual a ciência, pode entender com clareza ‘que não pode entender', então tudo estará desordenado. É, portanto, uma tarefa do conhecimento humano compreender que existem essas coisas e quais são essas coisas que ela não pode compreender."7

2. Fé e sentido do sagrado

Espera-se que este tipo de desafio mútuo entre fé e razão continue no futuro. É inevitável que cada época refaça o o caminho por conta própria, mas nem os racionalistas converterão as pessoas de fé e nem serão convertidos por elas. É preciso encontrar uma maneira de romper com esse círculo e liberar a fé desse gargalo. Em todo esse debate sobre a razão e a fé, é a razão que impõe sua escolha e força a fé, por assim dizer, a jogar fora de casa e na defensiva.

Disso, o cardeal Newman estava bem consciente, e, em outro de seus discursos universitários, adverte contra o risco da mundanização da fé em seu desejo de correr atrás da razão. Ele dizia entender, embora sem poder aceitar plenamente, as razões dos que são tentados a separar completamente a fé da investigação racional, por causa do "antagonismo e das divisões fomentadas da argumentação e debates, a confiança orgulhosa que geralmente acompanha o estudo das provas apologéticas, a frieza, o formalismo, o espírito secularista e carnal, enquanto a Escritura fala da religião como de uma vida divina, radicada no afeto e manifestada na graça espiritual"8.

Em todo trabalho de Newman sobre a relação entre razão e fé, então não menos debatida que hoje, há uma ressalva: não é possível combater um racionalismo com outro, talvez contrário. É necessário encontrar outro caminho que não pretenda substituir a da defesa racional da fé, mas, que, pelo menos, a acompanhe, ainda porque os destinatários do anúncio cristão não são os intelectuais, capazes de envolver-se nesse tipo de confronto, mas a massa de pessoas comuns indiferente a isso e mais sensível a outros argumentos.
Pascal propunha o caminho do coração: "O coração tem razões que a própria razão desconhece"9; os românticos (Schleiermacher, por exemplo) propunham o do sentimento.

Ainda existe, penso, um caminho a percorrer: a da experiência e do testemunho. Não pretendo aqui falar da experiência pessoal, subjetiva, da fé, mas de uma experiência universal e objetiva que podemos, por isso, fazer valer mesmo no confronto com pessoas alheias à fé. Ela não nos leva à fé plena e salvadora, a fé em Jesus Cristo morto e ressuscitado, mas pode ajudar a criar nessas pessoas a base que é a abertura ao mistério, a percepção de algo que está acima do mundo e da razão.

A contribuição mais notável que a moderna fenomenologia da religião ofereceu à fé, principalmente na forma que ela toma na clássica obra de Rudolph Otto, "O Sagrado"10, é ter demonstrado que a afirmação tradicional que de existe algo que não se explica com a razão, não é um pressuposto teórico ou de fé, mas um dado primordial de experiência.
Existe um sentimento que acompanha a humanidade desde seus primórdios até o presente em todas as religiões e culturas: o autor o chama de o sentimento do numinoso. (No intuito de elucidar as características irracionais peculiares do sagrado, o autor cria o neologismo numinoso, derivado do termo latino numen, que significa deidade ou influxo divino. Explica ele que o elemento numinoso pode ser identificado como um princípio ativo presente na totalidade das religiões, portador da ideia do bem absoluto. Quando se refere ao numinoso, esclarece que é "uma categoria especial de interpretação e de avaliação e, da mesma maneira, de um estado de alma numinoso que se manifesta quando esta categoria se aplica, isto é, sempre que um objeto se concebe como numinoso", N. da T.) 11. Esse é um dado primário, irredutível a qualquer outro sentimento ou experiência humana; toma o homem como uma emoção quando, por qualquer circunstância externa ou interna a ele, se encontra diante da revelação do mistério "tremendo e fascinante" do sobrenatural.

Otto designa o objeto desta experiência com o adjetivo "irracional" (o subtítulo da obra é "Sobre o Irracional na Ideia do Divino e sua Relação com o Irracional"); mas toda a obra demonstra que o sentido que ele dá ao termo "irracional" não é o de "contrário à razão", mas o de "além da razão", de não traduzível em termos racionais. O numinoso se manifesta em graus diferentes de pureza: do estado mais bruto, que é a reação mais inquietante suscitada pelas histórias de espíritos e fantasmas, ao estado mais puro, que é a manifestação da santidade de Deus - o Qadosh bíblico - como na célebre cena da vocação de Isaías (Is. 6, 1ss).

Se é assim, a evangelização do mundo secularizado passa também pela recuperação do sentido do sagrado. O terreno de cultura do racionalismo - sua causa e, ao mesmo tempo, seu efeito - é a perda do sentido do sagrado. É necessário, por isso, que a Igreja ajude os homens a subir a montanha e redescobrir a presença e a beleza do sagrado no mundo. Charles Péguy disse que "a assustadora penúria do sagrado é a marca profunda do mundo moderno". Isso é evidente em cada aspecto da vida, mas especialmente na literatura e na linguagem de todos os dias. Para muitos autores, ser definido como "dessacralizado" não é mais uma ofensa, mas um elogio.

A Bíblia foi acusada por vezes de ter "dessacralizado" o mundo por ter perseguido ninfas e divindades das montanhas, dos mares e dos bosques e ter feito destas simples criaturas a serviço do homem. Isso é verdade, mas foi justamente despojando-lhes desse falso pretexto de divindade que a Escritura pôde restituir-lhes sua genuína natureza de "sinal" do divino. A Bíblia combate a idolatria das criaturas, não sua sacralidade.

Assim, "secularizado", o criado tem agora mais poder de provocar a experiência do numinos e do divino. De uma experiência desse gênero carrega o sinal, em minha opinião, a célebre declaração de Kant, o representante mais ilustre do racionalismo filosófico:

"Duas coisas enchem o coração de admiração e veneração, sempre novas e sempre crescentes, à medida que a reflexão se dirige e se consagra a elas: o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim (...) o primeiro espetáculo, de uma inumerável multidão de mundos, aniquila, por assim dizer, a minha importância, por ser eu uma criatura animal que deve voltar à matéria de que é formado o planeta (um simples ponto no Universo) depois de (não se sabe como) ter sido dotada de força vital durante curto espaço de tempo. O segundo espetáculo, ao contrário, eleva infinitamente o meu valor, como o de uma inteligência por minha personalidade, na qual a lei moral me manifesta uma vida independente da animalidade e até mesmo de todo o mundo sensível (1994, p.102)."12

Um cientista vivo, Francis Collins, há pouco nomeado acadêmico pontifício, em seu livro "A Linguagem de Deus", descreve assim o momento de sua volta à fé: "Numa bela manhã de outono, enquanto, pela primeira vez, passeando pela montanha, fui empurrado para o oeste do Mississipi, a majestosidade e beleza da criação venceram minha resistência. Entendi que a busca tinha chegado ao fim. Na manhã seguinte, quando o sol surgiu, ajoelhei-me sobre na grama molhada e me rendi a Jesus Cristo."13

As mesmas descobertas maravilhosas da ciência e da tecnologia, ao invés de levarem ao desencantamento, podem chegar a ser ocasiões de admiração e de experiência do divino. O momento final da descoberta do genoma humano é descrito pelo próprio Francis Collins, que foi o chefe da equipe que chegou a tal descoberta, "uma experiência de exaltação científica e ao mesmo tempo de adoração religiosa". Entre as maravilhas da criação, nada é mais maravilhoso que o homem e, no homem, sua inteligência criada por Deus.

A ciência se desespera agora para tocar um limite extremo na exploração do infinitamente grandioso que é o universo e na exploração do infinitamente pequeno que são as partículas sub-atômicas. Alguns fazem desta "desproporção" um argumento a favor da inexistência de um Criador e da insignificância do homem. Para os crentes, esses são o sinal por excelência não só da existência, mas também dos atributos de Deus: a vastidão do universo é sinal de sua infinita grandeza e transcendência; a pequenez do átomo, da sua imanência e da humildade da sua encarnação, que o levou a fazer-se criança no seio de uma mãe e minúsculo pedaço de pão nas mãos do sacerdote.

Mesmo na vida humana, não faltam ocasiões nas quais é possível fazer a experiência de uma "outra" dimensão: a paixão, o nascimento do primeiro filho, uma grande alegria. É preciso ajudar as pessoas a abrir os olhos e reencontrar a capacidade de surpreender-se. "Quem se surpreende, reinará", afirma um ditado atribuído a Jesus fora dos Evangelhos14. No romance "Os Irmãos Karamazov", Dostoiévski refere as palavras que o starets Zózimo, ainda um oficial do exército, fala aos presentes, no momento em que, tocado pela graça, renuncia a duelar com o adversário: "Senhores, olhai em volta os dons de Deus: este céu límpido, este ar puro, essa grama terna, estes passarinhos; a natureza é tão bela e inocente, enquanto nós, só nós, estamos longe de Deus e somos estúpidos e não compreendemos que a vida é um paraíso, uma vez que seria suficiente que quiséssemos compreender e, imediatamente aquilo se instauraria com toda sua beleza e nós nos abraçaríamos e romperíamos em lágrimas"15. Este é o verdadeiro sentido da sacralidade do mundo e da vida!

3. Necessidade de testemunhas

Quando a experiência do sagrado e do divino chega súbita e inesperada de fora de nós e é acolhida e cultivada, torna-se experiência subjetiva vivida. Temos assim as "testemunhas" de Deus que são santos e, de modo especial, uma categoria destes, os místicos.

Os místicos, segundo uma definição célebre de Dionísio o Areopagita, são aqueles que "padeceram Deus"16, isto é, participaram e viveram o divino. São, para o restante da humanidade, como exploradores que entraram primeiro, secretamente, na Terra Prometida e depois voltaram para contar o que tinham visto - "uma terra que mana leite e mel" - e exortar todo o povo a atravessar o Jordão (cf Num 14,6-9). Por meio deles, chegam a nós, nesta vida, os primeiros raios da vida eterna.

Quando lemos seus escritos, parecem distantes e até ingênuos os mais sutis argumentos dos ateus e racionalistas! Nasce, na relação com estes últimos, um sentido de surpresa e até de lástima como diante de alguém que fala de coisas que não conhece. Como alguém que acreditasse ter descoberto contínuos erros de gramática num interlocutor e não se desse conta que este está simplesmente falando uma outra língua que ele não conhece. Mas não há nenhuma vontade de confronto, mesmo as palavras em defesa de Deus parecem, naquele momento, vazias e fora de lugar.

Os místicos são, por excelência, aqueles que descobriram que Deus "existe", e mais ainda, que não somente existe realmente como infinitamente mais real que aquilo que chamamos realidade. Foi precisamente de um destes encontros que uma discípula do filósofo Husserl, judia e ateia convicta, uma noite descobriu o Deus vivo. Falo de Edith Stein, depois Santa Teresa Benedita da Cruz. Hospedada por amigos cristãos, quando estes precisaram ausentar-se uma noite, sozinha na casa e sem saber o que fazer, tomou um livro da biblioteca dos amigos e começou a ler. Era a autobiografia de Santa Teresa de Ávila. Atravessou a noite lendo. Chegada ao final, exclamou simplesmente: "Esta é a verdade!" No início da manhã, foi à cidade para comprar um catecismo católico e um missal e, depois de tê-los estudado, dirigiu-se a uma igreja próxima e solicitou o Batismo ao sacerdote.

Eu também fiz uma pequena experiência do poder que os místicos têm de fazer-nos tocar o sobrenatural. Era o ano em que se discutia muito o livro de um teólogo intitulado "Existe Deus? ("Existiert Gott?"); mas, terminada a leitura, poucos estavam preparados para trocar o ponto de interrogação do livro para o de exclamação. Indo a um congresso, tinha levado comigo o livro dos escritos da Beata Angela de Foligno, que eu ainda não conhecia. Fiquei literalmente deslumbrado; levava o livro comigo nas conferências, abria-o a cada intervalo e, no final, eu o fechei dizendo a mim mesmo: "Se Deus existe? Não só existe, mas é realmente fogo devorador!"

Infelizmente, certa moda literária conseguiu neutralizar até a "prova" viva da existência de Deus que são os místicos. E o fizeram com um método único: não reduzindo seu número, mas aumentando-o; não restringindo o fenômeno, mas expandindo-o dramaticamente. Me refiro àqueles que, numa resenha sobre místicos, em antologias de seus escritos ou numa história da mística colocam lado a lado, como parte do mesmo gênero de fenômenos, São João da Cruz e Nostradamus; santos e excêntricos; mística cristã e cabala medieval; hermetismo, teosofismo, formas de panteísmo e até alquimia. Os verdadeiros místicos são outra coisa e a Igreja tem razão de ser rigorosa no juízo sobre eles.

O teólogo Karl Rahner, tomando, ao parecer, uma frase de Raimondo Pannikar, afirmou: "O cristão de amanhã, ou será um místico, ou não será". Tentava dizer que, no futuro, manter viva a fé dependerá do testemunho de pessoas que possuem uma profunda experiência de Deus, mais que a demonstração de sua plausibilidade racional. Paulo VI dizia, no fundo, a mesma coisa quando afirmava, na Evangelii nuntiandi (n.41): "O homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres, dizíamos ainda recentemente a um grupo de leigos, ou então, se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas".

Quando o apóstolo Pedro recomendava aos cristãos a estar "prontos a dar razão da vossa esperança" (1 Pe 3,15), é certo, no contexto, que ele não falava da razão especulativa ou dialética, mas da razão prática, ou seja, da sua experiência de Cristo, unida ao testemunho apostólico que a garantia. Num comentário a este texto, o cardeal Newman fala de "razões implícitas" que são, para os crentes, mais intimamente persuasivas que as razões explícitas e argumentativas17.

4. Um salto de fé no Natal

Chegamos, assim, à conclusão prática que mais nos interessa numa meditação como esta. Da irrupção imprevista do sobrenatural na vida não precisam só os que não creem e os racionalistas; necessitamos também nós, crentes, para reanimar a nossa fé. O maior perigo que correm as pessoas religiosas é de reduzir a fé a uma sequência de ritos e de fórmulas, repetidas, mesmo que com cuidado, mecanicamente e sem a íntima participação de todo o ser. "Esse povo me procura só de palavra, honra-me apenas com a boca, enquanto o coração está longe de mim. Seu temor para comigo é feito de obrigações tradicionais e rotineiras" (Is 29, 13).

O Natal pode ser uma ocasião privilegiada para ter esse salto de fé. Isso é a suprema "teofania" de Deus, a mais alta "manifestação do Sagrado". Infelizmente, o fenômeno do secularismo está despojando esta festa de seu caráter de "mistério tremendo" - isto é, que induz ao santo temor e à adoração - para reduzi-lo somente ao aspecto de "mistério fascinante". Fascinante, o que é pior, somente no sentido natural, não sobrenatural: uma festa dos valores familiares, do inverno, da árvore, das renas e do Papai Noel. Existe, em alguns países, a intenção de trocar o nome de "Natal" por "festa da luze". Em poucos casos a secularização é tão visível como no Natal.

Para mim, o caráter "numinoso" do Natal está ligado a uma memória. Assisti, um ano, à Missa do Galo, presidida por João Paulo II, em São Pedro. Chegou o momento do canto da Kalenda, ou seja, a solene proclamação do nascimento do Salvador, presente no antigo Martirológio e reintroduzida na liturgia natalina depois do Vaticano II:

"Tendo transcorridos muitos séculos desde a criação do mundo
Treze séculos depois da saída de Israel do Egito
Na centésima nonagésima quarta Olimpíada
No ano 752 da fundação de Roma
No quadragésimo segundo ano do Império de César Augusto
Jesus Cristo, Deus eterno e Filho eterno do Pai, tendo sido concebido por obra do Espírito Santo, tendo transcorrido nove meses, nasce em Belém da Judeia, da Virgem Maria, feito homem."

Chegados a estas últimas palavras, senti aquilo que se chama "unção da fé": uma repentina clareza interior, pela qual me lembro de dizer a mim mesmo: "É verdade! É tudo verdade isto que se canta! Não são somente palavras. O eterno entra no tempo. O último evento da série rompeu a série; criou um "antes" e um "depois" irreversível (olimpíada número tal, reinado de tal...); agora tudo ocorre em relação a um único evento". Uma súbita comoção atravessou toda a minha pessoa, enquanto só podia dizer: "Obrigado, Santíssima Trindade; e obrigado também a Vós, Santa Mãe de Deus!".

Ajuda muito a tornar o Natal a ocasião para um salto de fé, encontrar espaços de silêncio. A liturgia envolve o nascimento de Jesus no silêncio: "Dum medium silentium tenerent omnia", enquanto tudo em volta era silêncio. "Stille Nacht", noite de silêncio, é chamado o Natal num dos mas populares e amados cantos natalinos. No Natal, devemos sentir como dirigido a nós o convite do Salmo: "Parai! Sabei que eu sou Deus, excelso entre as nações, excelso sobre a terra" (Sal 46,11).

A Mãe de Deus é o modelo insuperável deste silêncio natalino: "Maria, porém, guardava todas estas coisas, meditando-as no seu coração (Lc 2, 19). O silêncio de Maria no Natal é mais que um simples calar-se; é maravilha, é adoração, é um "religioso silêncio", um ser "oprimido pela realidade". A interpretação mais real do silêncio de Maria é aquela encontrada nos antigos ícones bizantinos, onde a Mãe de Deus aparece imóvel, com o olhar fixo, os olhos arregalados, como quem viu algo que as palavras não podem expressar. Maria, antes de todos, elevou a Deus o que São Gregório Nazianzeno chama "um hino de silêncio"18.

Vive realmente o Natal quem é capaz de fazer hoje, depois de tantos séculos, o que teria feito se estivesse presente naquele dia. Quem faz o que Maria ensinou: ajoelhar-se, adorar e calar!

1 J.H. Newman, Oxford University Sermons, London 1900, pp.54-74; trad. Ital. di L. Chitarin, Bologna, Edizioni Studio Domenicano, 2004, pp. 465-481.
2 Ib.p. XV (trad. ital. Cit. p.726).
3 Ib., p. 183 (trad. ital. Cit. p.575).
4 Ibidem.
5 B.Pascal, Pensieri 267 Br.
6 S. Agostino, Epist. 130,28 (PL 33, 505).
7 S. Kierkegaard, Diario VIII A 11.
8 Newman, op. cit., p. 262 (trad. ital. cit., p. 640 s).
9 B. Pascal, Pensieri, n.146 (ed. Br. N. 277).
10Otto, Rudolf (1992) O Sagrado. Sobre o Irracional na Ideia do Divino e sua Relação com o Irracional. Lisboa: Edições 70.
11Bay, Dora (2004) Fascínio e Terror: O Sagrado. Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas, número 61, Universidade Federal de Santa Catarina.
12 E. Kant, Textos seletos. Introdução de Emmanuel Carneiro Leão. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 2005.
13 F. Collins, The Language of God. A Scientist Presents Evidence for Belief, Free Press 2006, pp. 219 e 255.
14 In Clemente Alessandrino, Stromati, 2, 9).
15 F. Dostoevskij, I Fratelli Karamazov, parte II, VI,
16 Dionigi Areopagita, Nomi divini II,9 (PG 3, 648) ("pati divina").
17 Cf. Newman, "Implicit and Explicit Reason", in University Sermons, XIII, cit., pp. 251-277
18 S. Gregorio Nazianzeno, Carmi, XXIX (PG 37, 507).

A resposta cristã ao secularismo - Pe. Raniero Cantalamessa OFM cap


Segunda Pregação do Advento

“A VIDA ETERNA QUE A VÓS ANUNCIAMOS” (1 Jo 1,2)

A resposta cristã ao secularismo

1. Secularização e secularismo

Nesta meditação, veremos o segundo obstáculo que a evangelização no mundo ocidental moderno encontra: a secularização. No Motu Proprio com o qual o Papa criou o Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização, é dito que este “está a serviço das Igrejas particulares, especialmente naqueles territórios de antiga tradição cristã onde se manifesta mais claramente o fenômeno da secularização”.

A secularização é um fenômeno complexo e ambivalente. Pode significar a autonomia das realidades terrenas e a separação entre o reino de Deus e o reino de César e, neste sentido, não só não é contra o Evangelho, mas encontra nele uma de suas raízes profundas. Pode, no entanto, indicar também todo um conjunto de atitudes contrárias à religião e à fé, pelo qual é preferível usar o termo secularismo. O secularismo está para secularização assim como o cientificismo para a ciência e o racionalismo à racionalidade.

Cuidando dos obstáculos ou desafios que a fé encontra no mundo moderno, referimo-nos exclusivamente a este sentido negativo da secularização. Mesmo assim delimitada, no entanto, a secularização tem muitas faces, dependendo dos campos em que se manifesta: a teologia, ciência, ética, a hermenêutica bíblica, a cultura em geral, a vida cotidiana. Nesta meditação, tomo o termo em seu primordial. A secularização, como o secularismo, na verdade, derivam da palavra saeculum, que no uso comum termina por indicar o tempo presente (aeon atual, segundo a Bíblia), por oposição à eternidade (aeon futuro, “séculos dos séculos”, da Bíblia. NT: um período de tempo extremamente longo e indefinido). Nesse sentido, o secularismo é sinônimo de temporalidade, de redução do real somente à dimensão terrena.

A queda do horizonte da eternidade ou da vida eterna tem, sobre a fé cristã, o mesmo efeito que a areia jogada sobre uma chama: a sufoca, a apaga. A crença na vida eterna é uma das condições de possibilidade da evangelização. “Se é só para esta vida que pusemos a nossa esperança em Cristo, somos, dentre todos os homens, os mais dignos de compaixão”. (1 Coríntios 15,19).

2. A ascensão e a queda da idéia de eternidade

Recordemos brevemente a história da crença na vida após a morte, vai nos ajudar a medir a novidade trazida pelo Evangelho neste campo. Na religião hebraica do Antigo Testamento, essa crença se afirma tardiamente. Somente depois do exílio, diante do fracasso das expectativas temporais, nasce a ideia da ressurreição da carne e de uma recompensa após a morte para os justos, e ainda assim não todos a adotam (os saduceus, como sabemos, não partilham tal crença).

Isso desmente clamorosamente a tese daqueles (Feuerbach, Marx, Freud) que explicam a crença em Deus com o desejo de uma recompensa eterna, como projeção no além de expectativas temporais frustradas. Israel acreditou em Deus, muitos séculos antes do que em uma recompensa eterna no além! Não é, portanto, o desejo de uma recompensa eterna que produziu a fé em Deus, mas é a fé que produziu a crença em uma recompensa pós morte.

No mundo bíblico, temos a plena revelação da vida eterna com a vinda de Cristo. Jesus não estabelece a certeza da vida eterna sobre a natureza do homem, a imortalidade da alma, mas sobre “o poder de Deus”, que é um "Deus não de mortos, mas de vivos" (Lc 20, 38). Depois da Páscoa, a este fundamento teológico, os apóstolos acrescentarão o cristológico: a ressurreição de Cristo dentre os mortos. Nela, o Apóstolo fundou a fé na ressurreição da carne e na vida eterna: “Ora, se se prega que Cristo ressuscitou dentre os mortos, como podem alguns dentre vós dizer que não há ressurreição dos mortos? Mas, na realidade, Cristo ressuscitou dos mortos como primícias dos que morreram” (1 Cor 15, 12.20).

Também no mundo greco-romano assiste-se a uma evolução na concepção de vida após a morte. A mais antiga ideia é a de que a verdadeira vida termina com a morte; depois dessa existe somente um simulacro de vida, num mundo de sombras. Uma novidade se registra com o aparecimento religião órfico-pitagórica. De acordo com ela, o verdadeiro eu do homem é a alma, que, libertada da prisão (sema) do corpo (soma), pode finalmente viver sua verdadeira vida. Platão dará uma dignidade filosófica a esta descoberta, baseando-a na natureza espiritual e, portanto, imortal, da alma [1].

Essa crença permanecerá, no entanto, sendo minoritária, reservada aos iniciados nos mistérios e aos seguidores de escolas filosóficas especiais. Para a massa, persistirá a antiga crença de que a vida real termina com a morte. São conhecidas as palavras que o imperador Adriano dirigi a si próprio próximo de morrer:

“Pequena alma, alma terna e inconstante,
companheira do meu corpo, de que foste hóspede,
vais descer àqueles lugares pálidos,
duros e nus, onde deverás renunciar aos jogos de outrora.
Por um momento, contemplemos juntos ainda os lugares familiares,
os objetos que certamente nunca mais veremos...” [2].

Entende-se neste contexto o impacto que devia ter a mensagem cristã de vida após a morte infinitamente mais plena e mais alegre do que a da terra; também podemos entender por que a ideia e os símbolos da vida eterna são tão comuns nas sepultura cristãs das catacumbas romanas.

Mas o que aconteceu à ideia cristã de uma vida eterna para a alma e para o corpo depois de ter triunfado sobre a ideia pagã de “escuridão além da morte”? Ao contrário do momento atual, no qual o ateísmo é primariamente expresso na negação da existência de um Criador, no século XIX, ele se expressava na negação da vida após a morte. Acolhendo a afirmação de Hegel, segundo a qual “os cristãos desperdiçam no céu a energia destinada à terra”, Feuerbach e principalmente Marx combateram a crença na vida após a morte, sob o pretexto de que aliena o compromisso terreno. À ideia de uma sobrevivência pessoal em Deus, se substitui uma ideia de sobrevivência na espécie e na sociedade do futuro.

Pouco a pouco, recaiu sobre a palavra eternidade a suspeita e o silêncio. O materialismo e o consumismo completaram a obra nas sociedades opulentas, fazendo parecer inconveniente que se fale ainda de eternidade entre pessoas cultas e em sintonia com os tempos. Tudo isso provocou claramente um retrocesso na fé dos crentes que, com o tempo, fez-se tímida e reticente sobre este ponto. Quando ouvimos o último sermão sobre a vida eterna? Continuamos a rezar o Credo: “Et expecto resurrectionem mortuorum et vitam venturi saeculi” (“E Espero a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há de vir”), mas sem dar muito peso a estas palavras. Kierkegaard tinha razão quando escreveu: "A vida após a morte tornou-se uma piada, uma necessidade tão incerta que não só ninguém respeita, mas nem mesmo se cogita que exista, ao ponto que se divertem com o pensamento de que houve um tempo em que esta ideia transformava a toda a existência” [3].

Qual é o efeito prático desse eclipse da ideia de eternidade? São Paulo refere-se à intenção daqueles que não acreditam na ressurreição dos mortos: “Comamos e bebamos, pois amanhã morreremos” (1 Cor. 15,32). O desejo natural de viver sempre, distorcido, torna-se um desejo ou frenesi de viver bem, ou seja, agradavelmente, mesmo que às custas dos outros, se necessário. Toda a terra se torna o que Dante disse da Itália da sua época: "o canteiro que tão nos faz ferozes". Perdido o horizonte da eternidade, o sofrimento humano parece dupla e irremediavelmente absurdo.

3. A eternidade: uma esperança e uma presença

Ainda a propósito do secularismo, como para o cientificismo, a resposta mais eficaz não é combater o erro contrário, mas fazer brilhar novamente diante dos homens a certeza da vida eterna, confiando na força intrínseca que possui a verdade quando é acompanhada pelo testemunho de vida. "Sempre se poderá negar uma ideia com outra – escreve um antigo Padre – e uma opinião pode ser oposta à outra; mas o que poderá se opor a uma vida?”

Devemos também aproveitar a correspondência de tal verdade ao desejo mais profundo, ainda que reprimido, do coração humano. A um amigo que o repreendeu, quase como se seu desejo de eternidade fosse uma forma de orgulho e arrogância, Miguel de Unamuno, que não era um apologista da fé, disse em uma carta:

“Eu não estou dizendo que merecemos uma vida depois da morte, nem que a lógica nos mostre isso; estou dizendo que a necessito, mereça ou não, e nada mais. Estou dizendo que o que é passageiro não me satisfaz, que tenho sede de eternidade, e que, sem ela, tudo dá no mesmo para mim. Eu necessito disso, necessito! E, sem isso, nem a alegria de viver quer dizer coisa alguma. É muito cômodo dizer ‘temos de viver, temos de estar contentes com a vida!’ E os que não nos contentamos com ela?” [4].

Não é que desejasse a eternidade - acrescentava na mesma ocasião - desprezando o mundo e a vida aqui embaixo: “Eu amo tanto a vida que, perdê-la, parece-me o pior dos males. Não amam realmente a vida aqueles que vivem o dia a dia, sem preocupar-se por saber se vão perdê-la totalmente ou não”. Santo Agostinho dizia a mesma coisa: Cui non datur semper vivere, quid prodest bene vivere?, “De que serve viver bem, se não nos é dado viver para sempre?” [5]. “Tudo, exceto o eterno, é vão ao mundo”, cantou um dos nossos poetas [6].

Aos homens do nosso tempo, que cultivam no fundo do coração esta necessidade de eternidade, sem talvez ter a coragem de confessar a outros e nem para si mesmo, podemos repetir o que Paulo disse aos atenienses: “Pois bem, aquilo que adorais sem conhecer, eu vos anuncio” (cf. At 17,23).

A resposta cristã ao secularismo, no sentido que entendemos aqui, não se baseia, como para Platão, em uma ideia filosófica - imortalidade da alma - mas em um evento. O Iluminismo tinha colocado a famosa pergunta de como é possível atingir a eternidade, enquanto você estiver no tempo, e como dar um ponto de partida histórico para uma consciência eterna [7]. Em outras palavras: como se pode justificar a alegação da fé cristã de prometer uma vida eterna e de ameaçar com uma pena igualmente eterna por atos realizados no tempo.

A única resposta válida para este problema é aquela baseada na fé na encarnação de Deus. Em Cristo, o eterno entrou no tempo, manifestado na carne; diante dele é possível tomar uma decisão para a eternidade. É assim que o evangelista João fala da vida eterna: “Vida eterna que a vós anunciamos, que estava junto do Pai e que se tornou visível para nós” (1 Jo 1, 2).

Para o crente, a eternidade não é, como se vê, somente uma esperança, é também uma presença. Realizamos a experiência cada vez que fazemos um verdadeiro ato de fé em Cristo, porque todo aquele que nele crê “já possui a vida eterna” (cf. 1 Jo 5,13), e toda vez que recebemos a comunhão, onde nos é dado “o penhor da glória futura” (futurae gloriae nobis pignus datur); toda vez que escutamos as palavras do Evangelho são “palavras de vida eterna "(Jo 6,68). São Tomás de Aquino também afirma que “a graça é o início da glória” [8].

Esta presença da eternidade no tempo é chamada Espírito Santo. Ele é descrito como “garantia da nossa herança” (Ef 1,14; 2 Coríntios 5,5), e foi dada a nós porque, tendo recebido as primícias, nós ansiamos pela plenitude. “Cristo - escreve Santo Agostinho - nos deu o penhor do Espírito Santo com o qual ele, que não poderia enganar-nos, quis ter certeza do cumprimento de sua promessa. O que ele prometeu? Ele prometeu a vida eterna, cuja garantia é o Espírito Santo que nos foi dado ” [9].

4. Quem somos nós? De onde viemos? Para onde vamos?

Entre a vida de fé no tempo e a vida eterna no tempo há uma relação semelhante à que existe entre a vida do embrião no seio materno e a do bebê, uma vez nascido. Cabasilas escreve:

“Este mundo traz, em gestação, o homem interior, novo, criado segundo Deus, para que ele, formado, moldado e tornado perfeito, não seja gerado àquele mundo perfeito que não envelhece. Como o embrião que, enquanto está na existência escura e líquida, a natureza prepara à vida na luz, é assim com os santos [...]. Para o embrião, no entanto, a vida futura é absolutamente futura: não chega a ele nenhum raio de luz, nada do que é desta vida. Não é assim para nós, do momento que o século futuro foi como derramado e misturado ao presente [...] Então, agora já é concedido aos santos não só dispor-se e preparar-se à vida, mas viver e atuar” [10].

Há uma história que ilustra essa comparação. Havia dois gêmeos, um menino e uma menina, tão inteligentes e precoces que, mesmo no útero materno, já conversavam entre si. A menina perguntava ao irmão: “Pra você, haverá vida após o nascimento?”. Ele respondia: “Não seja ridícula. O que faz você pensar que exista algo fora desse espaço estreito e escuro em que nos encontramos? A menina, criando coragem, insistia: “Talvez haja uma mãe, alguém que nos colocou aqui e que vai cuidar de nós.” Ele disse: “Você vê alguma mãe em algum lugar? O que você vê é tudo que existe”. Ela de novo: “Mas você não sente, às vezes, uma pressão no peito que aumenta dia a dia e nos impele para frente?”. “Pensando bem, ele respondeu, é verdade, sinto isso o tempo todo”. “Veja, concluiu, triunfante, a irmã mais nova, essa dor não pode ser para nada. Eu acho que está nos preparando para algo maior do que este pequeno espaço”.

Podemos usar esta simpática história quando tivermos de anunciar a vida eterna para as pessoas que perderam a fé nela, mas conservaram a nostalgia e talvez esperam que a Igreja, como aquela menina, as ajude a acreditar.

Há perguntas que os homens não deixam de fazer desde que o mundo é mundo e os homens de hoje não são exceção: “Quem somos nós? De onde viemos? Para onde vamos”. Na sua “História Eclesiástica do Povo Inglês”, Beda, o Venerável, relata como a fé cristã entrou no norte da Inglaterra. Quando os missionários, vindos de Roma, chegaram a Northumberland, o rei Edwin convocou um conselho de notáveis para decidir se permitiam a eles ou não, pelo menos, divulgar a nova mensagem. Um deles se levantou e disse:

“Suponha, ó rei, esta cena. Você se senta para jantar com seus ministros e líderes: é inverno, o fogo arde no meio e aquece a sala, enquanto lá fora, a tempestade grita e a neve cai. Um passarinho entra pela abertura de uma parede e sai imediatamente do outro lado. Enquanto está dentro, está protegido da tempestade de inverno mas, depois de desfrutar o calor rapidamente, apenas desaparece de vista, perdendo-se no inverno escuro de onde veio. Assim parece ser a vida do homem na terra: ignoramos tudo o que a segue e que a precedeu. Se esta nova doutrina nos traz algo mais seguro sobre isso, acho que deve ser acolhida” [11].

Quem sabe se a fé cristã não pode voltar à Inglaterra e ao continente europeu pela mesma razão pela que fez sua entrada: como a única que tem uma resposta definitiva a dar às grandes interrogações da vida terrena. A melhor oportunidade de transmitir esta mensagem são os funerais. Neles, as pessoas estão menos distraídas que nos outros ritos de passagem (Batismo, Casamento); eles questionam o seu próprio destino. Quando se chora por um ente querido, se chora também por si mesmo.

Certa vez ouvi um interessante programa da BBC inglesa sobre os chamados “funerais seculares”, com a gravação ao vivo de um deles. Em certo momento o mestre de cerimônias dizia aos presentes: “Nós não devemos ficar tristes. Viver uma vida boa, satisfatória, por 70 anos (a idade da falecida), é algo pelo qual se deveria ser grato”. “Grato a quem?, me perguntava. Tais funerais não fazem mais que deixar evidente a derrota total do homem frente à morte.

Os sociólogos e estudiosos da cultura, chamado a explicar o fenômeno dos funerais seculares ou “humanistas”, viam a causa da propagação desta prática em alguns países do norte da Europa no fato de que estes funerais religiosos envolvem os presentes numa fé que não se sentem à vontade para compartilhar. A proposta sugerida era: a Igreja, nos funerais, deveria evitar qualquer menção a Deus, à vida eterna, a Jesus Cristo morto e ressuscitado, e limitar seu papel ao de “organizadora natural e experiente dos ritos de passagem”! Em outras palavras, resignar-se à secularização inclusive da morte!

5. Vamos à casa do Senhor!

Não precisamos de uma fé renovada na eternidade somente para evangelizar, isto é, para o anúncio aos outros, precisamos dela, mesmo antes, para dar um novo impulso à nossa caminhada rumo à santidade. O enfraquecimento da ideia de eternidade atinge também os crentes, diminuindo neles a capacidade de enfrentar com coragem o sofrimento e as provas da vida.

Pensemos em um homem com uma balança na mão: uma daquelas balanças se equilibram com uma mão e tem de um lado um prato onde se colocam as coisas para pesar e do outro uma barra que marca o peso ou a medida. Se cai no chão ou perde a medida, tudo o que e colocado no prato levanta a barra e inclina a balança. Até um punhado de penas.

Assim somos nós quando perdemos o peso, a medida de tudo que é a eternidade: as coisas e os sofrimentos terrenos levam facilmente nossa alma ao chão. Tudo parece muito pesado, excessivo. Jesus dizia: “Se tua mão ou teu pé te leva à queda, corta e joga fora. É melhor entrares na vida tendo só uma das mãos ou dos pés do que, com duas mãos ou dois pés, seres lançado ao fogo eterno. Se teu olho te leva à queda, arranca-o e joga fora. É melhor entrares na vida tendo um olho só do que, com os dois, seres lançado ao fogo do inferno”. (cf. Mt 18,8-9). Mas nós, tendo perdido de vista a eternidade, achamos já excessivo que se nos peça fechar os olhos a um espetáculo imoral.

São Paulo se atreve a escrever: “Com efeito, a insignificância de uma tribulação momentânea acarreta para nós um volume incomensurável e eterno de glória. Isto acontece porque miramos às coisas invisíveis e não às visíveis. Pois o que é visível é passageiro, mas o que é invisível é eterno” (2 Cor 4,17-18). O peso da tribulação é “leve, porque provisório, o da glória é enorme exatamente por ser eterno”. Por esta razão, o mesmo Apóstolo pode dizer: “Eu penso que os sofrimentos do tempo presente não têm proporção com a glória que há de ser revelada em nós.” (Rm 8:18).

O cardeal Newman, que foi escolhido como mestre especial neste Advento, obriga-nos a adicionar uma verdade que falta na reflexão realizada até agora sobre a eternidade. Ele faz isso com o poema "O Sonho de Gerôncio", com música do grande compositor inglês Edgar Elgar. Uma verdadeira obra-prima pela profundidade de pensamento, pela inspiração e dramaticidade lírica.

Descreve o sonho de um ancião (o que significa o nome Gerontius-Gerôncio) que se sente perto do fim. A seus pensamentos sobre o sentido da vida, a morte, o abismo do nada no qual se precipita, se sobrepõem os comentários dos espectadores, a voz orante da Igreja: "Parte desse mundo, alma cristã” (proficiscere, alma christiana ), as vozes de contestação de anjos e demônios que pesam sua vida e reclamam sua alma. É particularmente bela e profunda a descrição do momento da morte e do despertar no outro mundo:

“Fui dormir, e agora estou renovado.
Um refresco estranho: por que eu sinto em mim
Uma leveza indescritível, e um sentido
De liberdade, como se eu finalmente fosse
E nunca tinha sido antes. Que paz!
Já não ouço mais que a incessante batida do tempo,
Não, nem me falta a minha respiração, ou o pulso;
Não é um momento diferente do outro” [12].

As últimas palavras que a alma pronuncia no poema são aquelas com as quais chega serena e até ansiosa ao Purgatório:

Lá cantarei o meu Senhor e amor ausente:
Leve-me embora,
Que, mais cedo eu possa subir, e ir acima,
E vê-Lo na verdade do dia eterno.” [13].

Para o imperador Adriano, a morte era a passagem da realidade às sombras, para o cristão John Newman ela é a passagem das sombras à realidade ex umbris et imaginibusin veritatem como quis que fosse escrito sobre seu túmulo.

Qual é, então, a verdade que Newman nos obriga a não manter em silêncio? Que a passagem do tempo à eternidade não é retilínea e igual para todos. Há um juízo para enfrentar, um juízo que pode ter dois resultados muito diferentes, o inferno ou o paraíso. A espiritualidade de Newman é austera, inclusive rigorosa, como a do Dies irae, mas que salutar nessa época inclinada a tomar tudo como brincadeira, como dizia Kierkegaard, com o pensamento da eternidade!

Elevemos o nosso pensamento à eternidade com renovado ímpeto. Repitamos a nós mesmos as palavras do poeta: “Tudo, exceto o eterno, o mundo é em vão.” No saltério hebraico há um grupo de salmos, chamados de “salmos de ascensão” ou “cânticos de Sião”. Eram os salmos que os peregrinos israelitas cantavam quando saíam em peregrinação à cidade santa, Jerusalém. Um deles começa assim: “Fiquei alegre, quando me disseram: Vamos à casa do Senhor!”. Estes salmos de ascensão tornaram-se os salmos de quem, na Igreja, segue a caminho da Jerusalém celeste; são os nossos salmos. Comentando sobre as palavras iniciais do salmo, Santo Agostinho dizia a seus seguidores:

“Corremos porque vamos para a casa do Senhor, corremos porque uma corrida como essa não cansa; porque chegaremos a uma meta onde não existe cansaço. Corramos à casa do Senhor e nossa alma se alegra por aqueles que repetem essas palavras. Estes viram primeiro que nós a pátria, os apóstolos a viram e nos disseram: “Corram, apressem-se, venham atrás! Vamos para a casa do Senhor!” [14].

Temos diante de nós, nesta capela, uma esplêndida representação em mosaico da Jerusalém celeste, com Maria, os apóstolos e uma longa procissão de santos orientais e ocidentais. Eles repetem silenciosamente este convite. Aceitemo-lo e levemo-lo conosco nesta jornada e ao longo da vida.


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Notas

[1] Cf. M. Pohlenz, L’uomo greco, Florença 1967, p. 173ss.
[2] Animula vagula, blandula, In ‘Memórias de Adriano’, p. 251, Editora Circulo do Livro, 1974
[3] S. Kierkegaard, Postilla conclusiva, 4, in Opere, a cura di C. Fabro, Firenze 1972, p. 458.
[4] Miguel de Unamuno, “Cartas inéditas de Miguel de Unamuno e Pedro Jiménez Ilundain,” ed. Hernán Benítez, Revista de la Universidad de Buenos Aires, vol. 3, no. 9 (Gennaio-Marzo 1949), pp. 135. 150.
[5] S. Agostinho, Tratado sobre o Evangelho de João, 45, 2 (PL, 35, 1720).
[6] Antonio Fogazzaro, “A Sera,” in Le poesie, Milano, Mondadori, 1935, pp. 194–197.
[7] G.E. Lessing, Über den Beweis des Geistes und der Kraft, ed. Lachmann, X, p.36.
[8] S. Tomás deAquino, Somma teologica, II-IIae, q. 24, art.3, ad 2.
[9] S. Agostinho, Sermo 378,1 (PL, 39, 1673).
[10] N. Cabasilas, Vida em Cristo, I,1-2, UTET, 1971, pp.65-67.,
[11] Beda, o Venerável, Historia ecclesiastica Anglorum, II, 13.
[12] O sonho de Gerôncio, in Newman Poeta, a cura di L. Obertello, Jaka Book, Milano 2010, p.124
[13] O sonho de Gerôncio, in Newman Poeta, a cura di L. Obertello, Jaka Book, Milano 2010, p.124
[14] S. Agostino, Enarrationes in Psalmos 121,2 (CCL, 40, p. 1802).

Fonte: www.cantalamessa.org

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Nota da Congregação para a Doutrina da Fé sobre o preservativo


Nota da Congregação para a Doutrina da Fé
Sobre a banalização da sexualidade
A propósito de algumas leituras de "Luz do Mundo"

Por ocasião da publicação do livro-entrevista de Bento XVI, «Luz do Mundo», foram difundidas diversas interpretações não correctas, que geraram confusão sobre a posição da Igreja Católica quanto a algumas questões de moral sexual. Não raro, o pensamento do Papa foi instrumentalizado para fins e interesses alheios ao sentido das suas palavras, que aparece evidente se se lerem inteiramente os capítulos onde se alude à sexualidade humana. O interesse do Santo Padre é claro: reencontrar a grandeza do projecto de Deus sobre a sexualidade, evitando a banalização hoje generalizada da mesma.

Algumas interpretações apresentaram as palavras do Papa como afirmações em contraste com a tradição moral da Igreja; hipótese esta, que alguns saudaram como uma viragem positiva, e outros receberam com preocupação, como se se tratasse de uma ruptura com a doutrina sobre a contracepção e com a atitude eclesial na luta contra o HIV-SIDA. Na realidade, as palavras do Papa, que aludem de modo particular a um comportamento gravemente desordenado como é a prostituição (cf. «Luce del mondo», 1.ª reimpressão, Novembro de 2010, p. 170-171), não constituem uma alteração da doutrina moral nem da praxis pastoral da Igreja.

Como resulta da leitura da página em questão, o Santo Padre não fala da moral conjugal, nem sequer da norma moral sobre a contracepção. Esta norma, tradicional na Igreja, foi retomada em termos bem precisos por Paulo VI no n.º 14 da Encíclica Humanae vitae, quando escreveu que «se exclui qualquer acção que, quer em previsão do acto conjugal, quer durante a sua realização, quer no desenrolar das suas consequências naturais, se proponha, como fim ou como meio, tornar impossível a procriação». A ideia de que se possa deduzir das palavras de Bento XVI que seja lícito, em alguns casos, recorrer ao uso do preservativo para evitar uma gravidez não desejada é totalmente arbitrária e não corresponde às suas palavras nem ao seu pensamento. Pelo contrário, a este respeito, o Papa propõe caminhos que se podem, humana e eticamente, percorrer e em favor dos quais os pastores são chamados a fazer «mais e melhor» («Luce del mondo», p. 206), ou seja, aqueles que respeitam integralmente o nexo indivisível dos dois significados - união e procriação - inerentes a cada acto conjugal, por meio do eventual recurso aos métodos de regulação natural da fecundidade tendo em vista uma procriação responsável.

Passando à página em questão, nela o Santo Padre refere-se ao caso completamente diverso da prostituição, comportamento que a moral cristã desde sempre considerou gravemente imoral (cf. Concílio Vaticano II, Constituição pastoral Gaudium et spes, n.º 27;Catecismo da Igreja Católica, n.º 2355). A recomendação de toda a tradição cristã - e não só dela - relativamente à prostituição pode resumir-se nas palavras de São Paulo: «Fugi da imoralidade» (1 Cor 6, 18). Por isso a prostituição há-de ser combatida, e os entes assistenciais da Igreja, da sociedade civil e do Estado devem trabalhar por libertar as pessoas envolvidas.

A este respeito, é preciso assinalar que a situação que se criou por causa da actual difusão do HIV-SIDA em muitas áreas do mundo tornou o problema da prostituição ainda mais dramático. Quem sabe que está infectado pelo HIV e, por conseguinte, pode transmitir a infecção, para além do pecado grave contra o sexto mandamento comete um também contra o quinto, porque conscientemente põe em sério risco a vida de outra pessoa, com repercussões ainda na saúde pública. A propósito, o Santo Padre afirma claramente que os preservativos não constituem «a solução autêntica e moral» do problema do HIV-SIDA e afirma também que «concentrar-se só no preservativo significa banalizar a sexualidade», porque não se quer enfrentar o desregramento humano que está na base da transmissão da pandemia. Além disso é inegável que quem recorre ao preservativo para diminuir o risco na vida de outra pessoa pretende reduzir o mal inerente ao seu agir errado. Neste sentido, o Santo Padre assinala que o recurso ao preservativo, «com a intenção de diminuir o perigo de contágio, pode entretanto representar um primeiro passo na estrada que leva a uma sexualidade vivida diversamente, uma sexualidade mais humana». Trata-se de uma observação totalmente compatível com a outra afirmação do Papa: «Este não é o modo verdadeiro e próprio de enfrentar o mal do HIV».

Alguns interpretaram as palavras de Bento XVI, recorrendo à teoria do chamado «mal menor». Todavia esta teoria é susceptível de interpretações desorientadoras de matriz proporcionalista (cf. João Paulo II, Encíclica Veritatis splendor, nn.os 75-77). Toda a acção que pelo seu objecto seja um mal, ainda que um mal menor, não pode ser licitamente querida. O Santo Padre não disse que a prostituição valendo-se do preservativo pode ser licitamente escolhida como mal menor, como alguém sustentou. A Igreja ensina que a prostituição é imoral e deve ser combatida. Se alguém, apesar disso, pratica a prostituição mas, porque se encontra também infectado pelo HIV, esforça-se por diminuir o perigo de contágio inclusive mediante o recurso ao preservativo, isto pode constituir um primeiro passo no respeito pela vida dos outros, embora a malícia da prostituição permaneça em toda a sua gravidade. Estas ponderações estão na linha de quanto a tradição teológico-moral da Igreja defendeu mesmo no passado.

Em conclusão, na luta contra o HIV-SIDA, os membros e as instituições da Igreja Católica saibam que é preciso acompanhar as pessoas, curando os doentes e formando a todos para que possam viver a abstinência antes do matrimónio e a fidelidade dentro do pacto conjugal. A este respeito, é preciso também denunciar os comportamentos que banalizam a sexualidade, porque - como diz o Papa - são eles precisamente que representam a perigosa razão pela qual muitas pessoas deixaram de ver na sexualidade a expressão do seu amor. «Por isso, também a luta contra a banalização da sexualidade é parte do grande esforço a fazer para que a sexualidade seja avaliada positivamente e possa exercer o seu efeito positivo sobre o ser humano na sua totalidade» («Luce del mondo», p. 170).

(Versão portuguesa distribuída pela Congregação para a Doutrina da Fé)