segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

A RENOVAÇÃO CARISMÁTICA: RENOVAÇÃO PROFÉTICA OU NEOCONSERVADORISMO? (Parte 2. FATORES INTERNOS DE TRADIÇÃO)



Salve Maria!
Continuamos agora com a segunda parte do texto escrito pelo teólogo e perito do Vaticano: II René Laurentin. Boa leitura.
Pax et Ignis!

2. FATORES INTERNOS DE TRADIÇÃO

Como esta experiência ecumênica arriscada pode prestar-se hoje ao rótulo “conservadorismo”? Isto depende antes de tudo de um caráter essencial e íntimo deste movimento: ele inspira um retorno não só a Bíblia, mas a Tradição cristã sob suas formas mais variadas. É este um dos fatos que mais me impressionaram nos grupos carismáticos de uma boa dezena de países visitados. Ouvi um dos líderes franceses deste movimento – o padre Monléon – lançar diante de vários auditórios este desafio que jamais foi refutado:

– Citai-me um único valor cristão que não seja vivido e realizado na Renovação: desde a Trindade ao culto dos santos; desde o ecumenismo até o Rosário; desde a festa até o jejum.

Encontramos, é verdade, tudo isto e o resto, nos grupos autênticos da Renovação, cada qual reinventando, do interior, traços variados cujo conjunto não se deixa facilmente catalogar sob a etiqueta tradicionalista ou progressista: gosto pelo apostolado, mas também pelo retiro e mesmo pelo eremitismo; sentido da ação de graças, mas também do pecado; da alegria, mas também da penitência; atrativo pelos sacramentos (em primeiro plano a Eucaristia) mas também por qualquer espécie de devoções particulares. Em suma, uma integralidade sem integrismo, a saber, sem estreiteza nem paixão nem pretensão, pelo menos onde a Renovação é bem vivida, o que acontece mais correntemente, segundo minha experiência.

O cristianismo ressurge assim na sua variedade até o contraste. O que impressiona nas comunidades da renovação é a segurança e a alegria com que cada qual escolhe seu estado de vida: celibato ou casamento. Ouvi um jovem de Ann Arbor confiar com muita simplicidade, por ocasião de uma partilha, após o casamento de um dos jovens de sua comunidade:

– Sinto-me muito feliz pelos dois, mas não me vejo em seu lugar. Para o futuro, vejo-me no lugar do padre que celebrava.

Numerosos casais em crise, às vezes em instância de divórcio, viram reflorescer seu primeiro amor e a força para reconstruir seu lar, acendendo à efusão do Espírito. De modo semelhante padres, em crise de identidade, reencontraram inspiração e frutos no seu ministério. Retiros carismáticos para padres congregaram de modo geral mais de milhares de pessoas, nos Estados Unidos.

Se este ressurgimento da Tradição dá nova vida a quase todas as formas do passado, especialmente as que poderiam parecer ultrapassadas, ou pelo menos perderam seu dinamismo: rosário, devoção aos santos, confissão e direção espiritual etc., não se trata de um arcaísmo ou de um retorno maníaco às formas antigas. Trata-se ao contrário, de uma redescoberta, de uma revivescência, que nasce do interior, por via de atrativo e de criatividade. Para citar um exemplo, as comunidades de tipo monástico que nascem espontaneamente na Renovação, mesmo celibatária, não adotam as regras das comunidades religiosas nascidas há dez séculos. Reinventam a regra de vida do interior. E se recaem as vezes nas regras tradicionais é por convergência e não apropriação. Tal é o caso das “cartas de aliança” elaboradas pelas duas Fraternidades (Brotherhood e Sisterhood celibatárias) de Ann Arbor e pelas comunidades de lares que assumem formas diversamente monásticas na França, em Grenoble, Montepellier (Teofania em Montepellier, Leão de Judá em Cordes, etc.).

Com relação à redescoberta da fé tradicional, o processo se assemelha à experiência dos convertidos vindos de fora do cristianismo. Penso em Marie-Alphonse Ratisbonne, o jovem banqueiro judeu, anti-cristão por tradição de família, que se converteu repentinamente à fé cristã, por uma súbita visão da Virgem Maria que teve em Roma, a 20 de janeiro de 1842:

– Ela nada me disse, mas entendi tudo, resumiu ele.

Ao ser doutrinado, parecia-lhe reconhecer cada uma das verdades que jamais ouvira, correspondendo exatamente à sua expectativa. André Frossard e outros convertidos fizeram a mesma experiência de reminiscência. Encontraram na catequese, teórica ou prática, a própria verdade que pressentiam: ela suscitava sua adesão feliz:

– É exatamente isso. Amem!

Esta experiência da efusão do Espírito comprova que o Novo Testamento e uma autêntica pneumatologia nos ensinam do Espírito Santo. Ele não age no exterior, mas do interior, “fonte de águaviva que jorra para a vida eterna” (Jo 7,37-39). Não é uma infusão de formas estereotipadas, de conhecimentos prontos, mas uma luz que esclarece a verdade objetivamente transmitida pela Revelação, um ela que regenera as formas da prática cristã ou as reinventa na criatividade. É assim que o Espírito Santo suscita homens e grupos, de acordo com suas diversidades históricas, geográficas, culturais e outras. Assim os cristãos são identificados a Cristo, não segundo a identidade, mas segundo uma diversidade de formas e de realizações.

Assim é a experiência do Espírito: Cada vez que ela ressurgiu, dos profetas do Novo Testamento e em nossos dias, suscitou num só movimento um retorno ao que há de mais longínquo no passado da Revelação e um poderoso impulso para o futuro de Deus, da Igreja e do mundo. Segundo o Espírito, a Tradição não se opõe ao progresso. Bem ao contrário: quanto mais se profunda a volta às fontes, mais audaciosamente pode ela repercutir no futuro. Francisco de Assis e Vicente de Paulo ilustram, entre outros, esta verdade.

Sendo o homem o que é, esta feliz aliança se realiza nos limites da fraqueza humana e através das vicissitudes do pecado enraizado neste mundo. Portanto, o absoluto de Deus e do Espírito só abre caminho através das  relatividades humanas.

Três observações ajudam a explicar as tendências ou aparências de conservadorismo de um movimento que apareceu sob o signo da novidade.

1. A conversão carismática atiça a necessidade de instituições fortes e de obediência. O fato se manifesta claramente entre os pentecostalistas clássicos. Um deles, americano, engravatado e bem vestido, confiou-me um dia que o “pastor” de sua comunidade lhe ordenara, meses antes, que cortasse a barba hippie e os cabelos longos. Ele obedeceu e se sentia feliz por este holocausto que havia fortificado seu fervor. Fiquei pensando sobre os motivos de tal decisão, tomada do exterior, pelo líder, em matéria tão gratuita. Fiz uma comparação com as disciplinas orientais que prescrevem aos monges barbas longas e cabelos compridos, em contraste com a cabeça raspada dos monges do Ocidente. A necessidade de regra e de obediência se nutre as vezes de relatividades contrastantes.

2. O neo-pentecostalismo, a saber, a expansão da experiência pentecostalista às igrejas tradicionais (anglicana 1958; luterana 1964; católica 1967), se caracteriza por uma lealdade e fidelidade rigorosas dos carismáticos a suas igrejas. E isto com mais força, quanto mais tradicionais elas forem.

3. Enfim, as comunidades carismáticas evoluem segundo uma lei geral da vida. Qualquer impulso vital cria formas novas. Depois tende a fechar-se e esclerosar-se. Esta é a lei do impulso vital, inclusive religioso, segundo Bergson. A religião aberta tende a evoluir normalmente para a religião fechada em que o impulso reincide e passa a girar em circulo (Cf. Henri Bergson, Lex deux sources de La morale et de La religion, Alcan, Paris 1932).

É assim que um ela pneumatológico autêntico como o da Renovação Carismática, como o de Francisco de Assis e de muitos outros há tempos atrás, pode ser rotulado de tradicional ou até conservador. Assim também, Tertuliano, montanista e cismático, conservou a etiqueta de homem de Tradição.
Continua...

Na terceira parte de A Renovação Carismática: Renovação Profética ou Neoconservadorismo? iremos ver os fatores extrínsecos de conservadorismo.
Aguarde.

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