terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Relato sobre o Apóstolo João (História Eclesiástica - Eusébio de Cesaréia)



Extraído do livro História Eclesiástica - Eusébio de Cesaréia. Livro III, XXIII, 1-19

1. Por este tempo vivia ainda na Ásia o mesmo a quem Jesus amou, o apóstolo e evangelista João, e ali continuava regendo as igrejas depois de regressar do desterro na ilha, depois da morte de Domiciano.

2. Que João permanecia em vida por este tempo é suficientemente confirmado por duas testemunhas.
Estas, representantes da ortodoxia da Igreja, são bem dignas de fé, tratando-se de homens como Irineu e Clemente de Alexandria.

3. O primeiro deles, Irineu, escreve textualmente em alguma parte do livro II de sua obra Contra as heresias como segue:
"E todos os presbíteros que na Ásia estão relacionados com João, o discípulo do Senhor, dão testemunho de que João o transmitiu, porque ainda viveu com eles até os tempos de Trajano."

4. E no livro III da mesma obra manifesta o mesmo com estas palavras: "Mas também a igreja de Éfeso, por ter sido fundada por Paulo e porque nela viveu João até os tempos de Trajano, é um testemunho veraz da tradição dos apóstolos."

5. Por sua parte, Clemente assinala o mesmo tempo, e em sua obra que intitulou Quem é o rico que se salva acrescenta uma narrativa valiosíssima para os que gostam de escutar coisas belas e proveitosas. Toma, pois, e lê o que ali escreveu:

6. "Escuta uma historieta, que não é uma historieta, mas uma tradição existente sobre o apóstolo João, transmitida e guardada na memória. Efetivamente, depois que morreu o tirano, João mudou-se da ilha de Patmos a Éfeso. Daqui costumava partir, quando o chamavam, até as regiões pagãs vizinhas, com o fim de, em alguns lugares, estabelecer bispos; em outros, erguer igrejas inteiras, e em outros ainda, ordenar a algum dos que haviam sido designados pelo Espírito.

7. Veio, pois a uma cidade não muito distante e cujo nome alguns inclusive mencionam. Depois de consolar os irmãos em tudo o mais, tendo visto um jovem de grande estatura, de aspecto elegante e de alma vivaz, fixou seu olhar no rosto do bispo instituído sobre a comunidade e disse: “Eu te confio este com toda a atenção, na presença da igreja e com Cristo como testemunha.” O bispo aceitou o jovem, prometendo-lhe tudo, mas João insistia no mesmo e apelando para as mesmas testemunhas.

8. Logo regressou a Éfeso, e o presbítero levou para casa o jovem que lhe havia sido confiado e ali o manteve, rodeou-o de afeto e por fim batizou-o. Depois disto afrouxou um pouco sua grande solicitude e vigilância, pensando que havia imposto a salvaguarda perfeita: o selo do Senhor.

9. Mas certos rapazes de sua idade, malandros, dissolutos e tendentes ao mal, perverteram-no. Sua liberdade era prematura. Primeiramente atraíram-no por meio de suntuosos banquetes; depois levaram-no consigo, inclusive de noite, quando saíam para o roubo, e por fim exigiram-lhe participar com eles de maldades maiores.

10. O jovem foi se acostumando a isto sem perceber, e desviando-se do caminho reto, como cavalo de boca dura, brioso e que rejeita o freio, por seu vigor natural foi-se precipitando com mais força ao abismo.

11. Acabou perdendo a esperança na salvação divina. Desde então não planejava coisas pequenas, mas, tendo já cometido grandes crimes, já que estava perdido de uma vez por todas, considerava justo correr o mesmo risco dos demais. Assim foi que, juntando-se aos mesmos e formando um bando de salteadores, era ele seu líder resoluto, o mais violento, o mais homicida, o mais temível de todos.

12. Depois de algum tempo surgiu certa necessidade e voltaram a chamar João. Este, depois de ter resolvido os assuntos pelos quais tinha vindo, disse: “Bem, bispo, devolve-me o depósito que eu e Cristo te confiamos na presença da igreja que presides e que é testemunha.”

13. O bispo a princípio ficou estupefato, acreditando ser vítima de calúnia sobre algum dinheiro que ele não havia recebido: não podia crer no que não tinha nem podia deixar de crer em João. Quando este lhe disse: “O jovem é o que te peço, e a alma do irmão”, o ancião prorrompeu em profundos soluços e, marejado de lágrimas, disse: “este está morto”. Como? Morto de quê? “Está morto para Deus - disse -, pois afastou-se transformado num perverso, um perdido, e para o cúmulo, um salteador, e agora ocupa o monte que está frente à igreja, com uma quadrilha de sua mesma índole.”

14. Rasgou o apóstolo sua roupa e, golpeando a cabeça, com grande lamento exclamou: “Bom guardião deixei para a alma do irmão! Mas tragam já um cavalo e alguém que me guie no caminho.” E dali, tal como estava, saiu da igreja e foi-se.

15. Chegou ao lugar. Os sentinelas dos bandidos deitaram-lhe as mãos, mas ele não fugia nem suplicava, mas aos gritos dizia: “Para isso vim, levem-me ao vosso chefe.”

16. Este, entretanto, aguardava armado como estava, mas ao reconhecer João naquele que se aproximava, fugiu cheio de vergonha. João o perseguia com todas suas forças, esquecido de sua idade e gritando:

17. “Por que foges de mim, filho, de mim, teu pai, desarmado e velho? Tem piedade de mim, filho, não tema. Ainda tens esperança de vida. Darei conta por ti a Cristo, e se for necessário, com gosto sofrerei por ti a morte, como o Senhor a sofreu por nós. Por tua vida eu darei em troca a minha própria. Pára! Tenha fé! Foi Cristo que me enviou!”

18. O jovem, ao ouvi-lo, primeiramente deteve-se, com os olhos baixos; em seguida largou as armas, e tremendo, abraçou-se a ele. Seus lamentos eram já um discurso de defesa, e suas lágrimas serviam-lhe de segundo batismo. Apenas ocultava a mão direita.

19. Mas João foi-lhe fiador, jurando que havia alcançado o perdão para ele por parte do Salvador, caiu de joelhos, suplicante, e beijou a mesma mão direita considerando-a já purificada pelo arrependimento. Reconduziu-o à igreja, orou com súplicas abundantes, acompanhou-o em sua luta com jejuns prolongados e foi cativando seu espírito com os variados atrativos de sua palavra, e segundo dizem, não saiu dali até tê-lo consolidado na igreja, depois de ter dado grande exemplo de verdadeiro arrependimento e grandes sinais de regeneração, como troféu de uma ressurreição visível.

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